Há exílios que não aparecem no passaporte. São silenciosos.
Imigrar é mais do que mudar de país. É atravessar uma linha invisível que separa o familiar do estrangeiro, o conhecido do indizível. Na psicanálise, compreendemos que essa travessia não se dá apenas no espaço físico, mas — e sobretudo — no território interno. A migração é um acontecimento do corpo e da alma.
Salman Akhtar, psicanalista e imigrante, lança luz sobre essa experiência multifacetada em seu artigo Psychoanalytic views on the experience of immigration. Com escuta atenta e delicada, ele nos conduz pelas paisagens subjetivas de quem deixa sua terra, sua língua e seu chão simbólico para habitar outro lugar — muitas vezes sem nome, sem pertencimento imediato.
Os lutos que ninguém vê
Ao migrar, o sujeito perde mais do que o que cabe na mala. Perde sua língua materna, com a qual aprendeu a nomear o mundo e a si mesmo. Perde o cheiro da comida, o som da vizinhança, o ritmo da própria cultura. Perde, também, o olhar do outro que o reconhecia — esse espelho que sustentava sua identidade.
Essas perdas, por vezes não simbolizadas, constituem o que Akhtar chama de lutos invisíveis. Não são nomeados socialmente como lutos, mas se instalam no psiquismo, demandando elaboração. Quando negados ou abafados, podem emergir como angústia, despersonalização, culpa, raiva ou mesmo estados depressivos. O exílio não é só geográfico: é psíquico.
Língua e inconsciente: quando o afeto se estranha
Na psicanálise, sabemos que o inconsciente se estrutura como linguagem. E é a língua materna que nos oferece as primeiras inscrições simbólicas, aquelas que conectam som e afeto. Ao viver em um idioma estrangeiro, o sujeito imigrante pode se sentir emocionalmente amputado. Palavras traduzem, mas não carregam o mesmo peso.
A fala se torna hesitante. O humor perde nuance. A ironia se esvazia. É como se o sujeito habitasse uma pele que não é sua. Para Akhtar, essa perda simbólica pode representar um tipo de castração afetiva, exigindo a construção de novas formas de expressão — ou o silêncio, que muitas vezes fala mais do que qualquer palavra.
Ruptura e reconfiguração do self
A identidade do imigrante entra em colapso. Entre o país de origem e o de destino, o sujeito vive em trânsito — nem lá, nem aqui. Isso pode gerar uma sensação de suspensão existencial, de estar fora de lugar, de ser estrangeiro até de si mesmo. A familiaridade do passado se contrapõe à urgência de adaptação ao presente. É o conflito entre o desejo de preservar raízes e a necessidade de reinvenção.
Akhtar descreve esse fenômeno como uma desorganização do ego, que precisa se reconfigurar para dar conta da nova realidade. E é nesse ponto que a clínica psicanalítica se torna um lugar privilegiado: espaço de escuta, elaboração e reconstrução simbólica.
A escuta como continente
Na clínica, o analista é convocado a escutar esses lutos que não têm nome. A escuta precisa ser ampla o suficiente para acolher a dor de não se reconhecer no novo país — e, ao mesmo tempo, a culpa por deixar para trás o antigo. O setting analítico oferece um continente psíquico no qual o sujeito pode reorganizar suas referências e recuperar o enraizamento simbólico.
Ouvir o imigrante é escutar sua travessia — não só literal, mas afetiva. É acolher o que ficou suspenso entre um mundo e outro. É permitir que o exílio encontre palavras. Que o trauma da ruptura possa, enfim, ser simbolizado.
A potência da reinvenção
Se imigrar é perder, também é — potencialmente — criar. A migração é uma experiência radical, mas fértil. Pode abrir espaço para novas sínteses, novas identificações, novos desejos. A dor da travessia pode, quando escutada, ser transformada em força criadora. Como diz Akhtar, o sujeito que imigrar, ao reencontrar sua voz, pode tornar-se mais plural, mais profundo e mais consciente da própria complexidade.
Assim, a psicanálise não apenas compreende o sofrimento da migração — ela o acolhe, o nomeia e o transforma. Porque todo exílio, quando escutado com profundidade, pode se tornar um ponto de retorno: não para o que fomos, mas para o que podemos ser.
Tatiana Colturato Festi
Psicologa
Referência
Akhtar, S. (2011). Psychoanalytic views on the experience of immigration. Psychoanalytic Psychology, 28(4), 515–532. https://doi.org/10.1037/a0024113