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Entre o Vazio e as Aparências: Reflexões sobre o Falso Self em ‘O Cavaleiro Inexistente’

Neste ano fui apresentada a dois textos clássicos. Um literário e, o outro, psicanalítico. O primeiro se refere à obra “O cavaleiro inexistente” (1959), de Ítalo Calvino, já o segundo, a um dos principais textos do pediatra e psicanalista britânico Winnicott sobre a teoria do falso Self, “Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self (1960).

Instigada pelas aproximações da teoria de Winnicott com as marcantes características de Agilulfo, personagem principal da obra de Calvino, me propus a pensar sobre ele como se fosse um paciente visto sob a ótica da psicanálise.

Agilulfo é um cavaleiro que apesar de possuir uma armadura brilhante e impecável, não possui uma existência física. Ele é o melhor dos paladinos, o mais valente e o mais forte dos combatentes, além disso é o mais regrado, inflexível e constante de toda a tropa. No entanto, quando alguém se aproxima mais dele se dá conta de que não há nada dentro de sua armadura. Há apenas uma voz que fala. Ele literalmente é um cavaleiro que não existe.

 Já o texto psicanalítico que me levou a refletir sobre Agilulfo fala sobre o conceito de falso self, introduzido por Winnicott para descrever um mecanismo de defesa desenvolvido durante a infância. Este conceito é fundamental para entender como a identidade de uma criança se forma em resposta às interações com seus cuidadores primários. Podemos dizer que o falso self, refere-se a uma personalidade que se desenvolve para satisfazer expectativas externas, em detrimento da sua verdadeira identidade ou essência (verdadeiro self) que se desenvolve a partir de uma relação saudável com seus cuidadores. E, como é de se esperar, o falso self se torna uma barreira significativa para a construção de relacionamentos autênticos e íntimos.

Agilulfo, me remete a um indivíduo com uma maciça defesa psíquica, um falso self que muito precocemente se interpôs ao desenvolvimento de seu self verdadeiro. Penso que essa ausência de um self verdadeiro é mascarada por sua armadura, sua dedicação meticulosa às obrigações cavaleirescas, sua total adesão à rotina e submissão às regras de sua Majestade.

A armadura que Agilulfo veste pode exemplificar o conceito de falso self de Winnicott na medida em que representa a fachada que ele apresenta ao mundo, uma imagem de perfeição e eficiência que esconde um imenso vazio interior.

As “relações interpessoais” de Agilulfo também ilustram as consequências de viver predominantemente através de um falso self. Sua incapacidade de se conectar emocionalmente e de demonstrar afetividade reflete a desconexão entre o falso e o verdadeiro self. Ele não é capaz de se envolver em relacionamentos íntimos ou expressar emoções, o que o isola das pessoas e, também, de si mesmo. Em níveis mais extremos essa função defensiva, ou dificuldade (impossibilidade?) de se vincular é encontrada em constituições psíquicas psicóticas. Por outro lado, em níveis menos extremos creio que
podemos fazer associações com a atual liquidez e superficialidade dos relacionamentos interpessoais em que predominam limitadas capacidades de se criar intimidade e vínculos verdadeiros.

De forma bastante resumida, podemos dizer que o autor argumenta que o desenvolvimento saudável do verdadeiro self depende de um ambiente de cuidado, um ambiente suficientemente bom, onde o
indivíduo pode expressar suas necessidades e sentimentos autênticos sem medo de rejeição. Mantendo a fantasia de que Agilulfo é um paciente, suponho que ele não experienciou um ambiente de cuidados primários suficientemente bom e acolhedor, inclusive, a falta desses cuidados deve ter se iniciado na fase
intrauterina. Sua existência é uma luta constante para manter uma impecável fachada, sem nunca alcançar a autenticidade ou a satisfação emocional.

Em certa ocasião, Agilulfo tem a legitimidade de sua “patente” questionada e, por conta disto, se entrega a uma árdua busca para provar a autenticidade e o merecimento de seu título. Ao se crer impossibilitado de prová-lo, ele simplesmente desaparece, restando apenas sua vazia armadura, caída ao solo.

Este triste final me faz pensar no ato do suicídio, quando o falso self começa a falhar em suas defesas, em situações em que vem à tona a irrealidade de sua existência, quando sua armadura cai. Segundo Winnicott (1983), “o suicídio neste contexto é a destruição do self total para evitar a aniquilação do self verdadeiro.” Lembrando que toda constituição do falso self se dá em função da proteção do self verdadeiro.

Winnicott diz que existe um falso self com funções defensivas menos extremas, que tendem mais para realidade. Então, partindo deste pressuposto e seguindo a linha de meu fantasioso texto, nos pergunto:  que relação poderíamos fazer entre a submissão de Agilulfo à sua majestade com a maneira que alguns de nós (todos nós em alguma medida?) se submetem às “majestades” dos tempos atuais? Acredito que essa majestade pode ser personificada no culto ao corpo, nos fanatismos às ideologias políticas extremistas, no consumismo desenfreado ou até mesmo na idolatria aos influenciadores digitais. Submissões que escondem um grande vazio interior, como se a pessoa ainda não tivesse começado a existir e essas referências externas fossem suas lustrosas e impecáveis armaduras, cujo interior é habitado apenas por uma voz e o vazio.

Tatiana Festi – Psicóloga Clínica com 19 anos de atuação. Graduada pela Universidade Estadual de Maringá e pós-graduada em Psicologia Junguiana. 

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Referencias:

Winnicott, D. W. A Distorção do Ego em termos de falso e verdadeiro Self (1960)
In: O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Ed. ARTMED, 1983

Calvino, I., O cavaleiro inexistente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

This Post Has One Comment
  1. Interessante esse ponto de vista sobre a exacerbação do falso self como forma de esconder defeitos (que podem ou não existir, dependendo da percepção que a pessoa tem de si mesma) do self verdadeiro. Gostei bastante.

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