A psicanálise há muito investiga o nascimento da mulher-mãe e do bebê como um acontecimento psíquico para ambos. E, se o nascimento subjetivo da mãe já é tema da clínica, agora a ciência aponta também para um nascimento físico: o cérebro materno se transforma, altera-se em silêncio, reconectando-se para acolher o outro. A maternidade, assim, inscreve-se também em tecido neuronal.
A biologia do amor maternal
O estudo de Hoekzema et al. (2017) revolucionou a neurociência ao demonstrar que a gravidez promove alterações estruturais de longo prazo no cérebro humano. Utilizando ressonância magnética, os pesquisadores acompanharam mulheres antes, durante e depois da gestação e descobriram que há uma “redução significativa da massa cinzenta em regiões envolvidas na cognição social” (1).
Não se trata de uma perda, mas de uma poda: o cérebro gestante reorganiza-se para fortalecer aquilo que mais importa — o vínculo. “Essas mudanças são tão consistentes que permitem prever, com 100% de precisão, se uma mulher ficou grávida ou não com base em imagens de seu cérebro” (Hoekzema et al., 2017) (1).
Essa remodelação, que pode durar até dois anos após o parto, é comparável àquelas vistas na adolescência — outro período de intensa neuroplasticidade e reconfiguração da identidade.
Quando a psicanálise encontra a neurociência
A clínica psicanalítica reconhece há décadas que a maternidade é uma travessia psíquica. A regressão necessária ao cuidado, a intensificação das fantasias inconscientes, o luto do corpo anterior. Agora, a neurociência nos permite ver essas transformações em imagens: sinapses, áreas ativadas, volumes que se retraem e depois se expandem.
“Durante a gestação, ocorre uma reorganização anatômica que prepara a mulher para interpretar melhor os sinais emocionais de seu bebê” (Pritschet et al., 2024) (2). O cérebro molda-se à tarefa de acolher o outro — de decifrá-lo, antecipá-lo, amá-lo.
O puerpério: tempo de plasticidade e de abismo
Se na psicanálise o puerpério pode ser vivido como uma espécie de “psicose transitória” (como dizia Winnicott, referindo-se ao risco de uma desorganização temporária do self), a ciência agora mostra que ele também é um tempo de enorme plasticidade neural. “Há um aumento na conectividade entre as regiões límbicas e o córtex pré-frontal, favorecendo a regulação emocional e a sensibilidade materna” (Paternina-Die et al., 2024) (3).
O puerpério não é apenas esgotamento, mas adaptação. O cérebro trabalha intensamente para interpretar o choro, reconhecer cheiros, ajustar-se à imprevisibilidade do recém-nascido. A mulher aprende a ser mãe em um corpo e mente que continuam a se transformar.
O fim do mito do “baby brain”
A cultura popular gosta de nomear como “baby brain” os lapsos de memória e atenção durante a gravidez. Mas a ciência contemporânea propõe uma nova narrativa. “O que se interpreta como déficit pode ser, na verdade, uma adaptação especializada para a parentalidade — um foco emocional ampliado, não uma falha cognitiva” (Callaghan et al., 2023) (4).
A mulher grávida não perde inteligência. Ela reconfigura sua cognição para as demandas do cuidado. O amor maternal tem sua topografia cerebral, suas trilhas invisíveis de sinapses, seu campo eletroquímico de escuta e presença.
Considerações psicanalíticas: corpo, desejo e alteridade
Para a psicanálise, a maternidade é também uma experiência de alteridade radical. O corpo gestante se transforma ao abrigar um outro — e, nesse acolhimento íntimo, ressoam fantasmas primitivos: o vínculo com a própria mãe, a posição frente ao desejo, a memória do que um dia foi ser gestada. Agora, sabemos que essa travessia não se limita ao campo psíquico: o cérebro materno torna-se, fisiologicamente, mais sensível ao outro.
“O que os dados neurocientíficos estão dizendo dialoga com o que escutamos em análise: que tornar-se mãe é ser transformada. Não apenas subjetivamente, mas neuronalmente.” — Tatiana Festi
Referências:
- Hoekzema, E. et al. (2017). Pregnancy leads to long-lasting changes in human brain structure. Nature Neuroscience. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27991897
- Pritschet, L., Hoekzema, E. et al. (2024). Neuroanatomical changes observed over the course of a human pregnancy. Nature Neuroscience. https://www.nature.com/articles/s41593-024-01741-0
- Paternina-Die, M. et al. (2024). Women’s neuroplasticity during gestation, childbirth and postpartum. Nature Neuroscience. https://www.nature.com/articles/s41593-024-01741-0
- Callaghan, B. L. et al. (2023). It’s time to change the label of “baby brain”. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1dxe1j9ljmo