Uma reflexão psicanalítica sobre o puerpério vivido por mulheres brasileiras em território estrangeiro — entre ausências afetivas, desafios institucionais e reinvenções silenciosas.

“Aqui a gente não tem uma aldeia.”
— Relato de uma mãe brasileira vivendo o puerpério na Europa (Raminelli, 2022)


Ser mãe já é uma travessia. Mas quando essa travessia se dá em outro país, ela se torna uma travessia em mar aberto.
A mulher migrante que engravida e pare longe da sua terra não gesta só uma criança — ela gesta também o desafio de se reinventar em uma paisagem onde a língua, os rituais e os corpos não lhe são familiares.

O puerpério, etapa de intensa transformação emocional e psíquica, é, por definição, um território vulnerável. Ao somar-se à experiência migratória, torna-se um campo de múltiplas perdas: da rede de apoio, das referências culturais, da familiaridade institucional.
É uma mulher que pare sem aldeia, que embala sem colo, que nomeia sem idioma.
E, ainda assim, permanece mãe.

Nos estudos reunidos aqui, especialmente os de Raminelli (2022), Mendes (2016), Supimpa (2022) e Mota (2011), escutamos as vozes de brasileiras que viveram a gestação, o parto e o puerpério em países como Portugal, Espanha, Itália, França e Reino Unido. Essas vozes, longe de serem homogêneas, traçam um panorama rico e dolorido sobre o que é se tornar mãe em terra estrangeira.

No artigo Maternidade distante do país de origem, Raminelli destaca que, para muitas dessas mulheres, o puerpério foi vivido como uma solidão intensificada:

“Sinto que não tenho com quem dividir nem o almoço, nem a dor. Aqui tudo é novo e tudo é demais.”

Essa ausência não é apenas concreta — da mãe, da tia, da amiga que cuida enquanto se cuida do bebê —, mas também simbólica. É a ausência de ritual, de linguagem compartilhada, de validação cultural do sofrimento materno. A autora aponta que muitas dessas mulheres buscaram compensar essa falta nas redes sociais, em grupos de apoio online entre imigrantes brasileiras. Esses espaços se tornam pequenas aldeias virtuais, onde partilhar o parto, o choro, o seio rachado, o medo do hospital ou a dificuldade em compreender o pediatra torna-se possível.

O artigo Parimos em Portugal (Supimpa, 2022), ao analisar relatos em grupos do Facebook, observa que apesar de muitas mulheres relatarem boas experiências com os serviços públicos portugueses, o que se destaca é a precariedade do apoio emocional e cultural. O cuidado institucional, embora tecnicamente qualificado, nem sempre reconhece a subjetividade dessas mulheres.

“Havia técnica, mas faltava escuta. Meu corpo foi atendido, mas minha alma ficou no Brasil.”

E aqui entra a escuta psicanalítica. A psicanálise se interessa justamente por esse resto, esse não-dito, esse intervalo entre o que é visível e o que não é nomeado. Quando ouvimos uma mulher migrante falando de sua experiência de parto, não estamos escutando apenas uma descrição médica ou um relato biográfico — estamos escutando também seus fantasmas, suas perdas, os ecos de sua infância, suas transferências culturais.

o de mestrado de Sílvia Mendes, é potente: ela revela que o parto, nesse contexto, é também um parto identitário. A mulher deixa de ser apenas estrangeira: torna-se, também, uma estrangeira de si.
E isso exige luto. Luto pela mulher que se era antes, pela família que não pôde estar, pelos afetos suspensos, pela infância que não será compartilhada com os avós.

O estudo de Mota (2011), que investiga o acesso de mães brasileiras aos serviços de saúde em Portugal, revela ainda outro aspecto: a dificuldade de estabelecer vínculos com profissionais da saúde que não compreendem os códigos culturais dessas mulheres. As queixas, as crenças, os modos de cuidado e até os silêncios são, muitas vezes, interpretados fora de contexto, gerando mal-entendidos e sofrimento.

“Senti que meu modo de cuidar era julgado. Como se fosse preciso desaprender minha cultura para ser boa mãe aqui.”

Esse tipo de vivência nos remete ao conceito de “transplante simbólico” — quando, para sobreviver em outro país, o sujeito precisa adaptar seus afetos, suas crenças, suas práticas a um novo solo cultural. Mas, como todo transplante, há riscos de rejeição.

É aí que a clínica se torna espaço fundamental. Uma escuta ética, sensível à singularidade do sujeito e à sua travessia migratória, pode oferecer não respostas, mas lugar. Lugar para dizer, para sofrer, para desejar.


Este texto é um convite. Um convite à escuta, à reflexão, ao cuidado.
É preciso escutar essas mulheres — não só como mães, mas como sujeitos em trânsito, entre territórios, entre línguas, entre versões de si mesmas.

Se não há aldeia, que ao menos haja a palavra.

Tatiana Festi
Psicóloga


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